Marcelo Semer
De São Paulo
O episódio da USP nos suscita várias questões.
Resumi-lo a um grupo de baderneiros querendo fumar livremente maconha é a forma mais simples para não entendê-lo.
Para dizer que os alunos não passam de um grupo de delinquentes mimados não precisaria gastar o meu tempo nem o do leitor.
Muito já foi escrito nesse sentido, permeado por um indisfarçável ressentimento com a USP, como 'escola da elite', e baseado na conservadora e tranquilizante noção de que a vida universitária se resume à comportada presença nas classes.
Escolhido pelo ex-governador José Serra, depois de ser o segundo colocado na eleição, o reitor Grandino Rodas já acumulava inúmeras críticas, antes mesmo da convocação da PM.
Na Faculdade de Direito, onde fora diretor, foi considerado 'persona non grata' de forma unânime pela Congregação, que reúne uma razoável parcela dos maiores juristas do país.
Pesou para a decisão o fato de que o reitor estaria usando dinheiro público para sistemática oposição à própria Faculdade, depois que esta abandonou alguns de seus discutíveis projetos, como alojar bibliotecas em prédios externos sem condições, ou vender patrocínio de salas da faculdade a advogados e banqueiros.
Já na USP, Rodas é criticado por funcionários pelo agudo processo de demissões e terceirizações que empreendeu e é investigado pelo Ministério Público por aquisição de imóveis fora do campus.
Há importantes questões republicanas em jogo, como a promiscuidade entre o público e o privado. Mas nada disso é tão caso de polícia como a forma de contestá-las.
A Polícia Militar foi chamada para proteger o corpo de universitários de crimes que aconteciam em seus amplos espaços ermos e escuros. Mas, convenhamos, vai demorar até que o contingente de policiais para a proteção se iguale aquele que esteve no campus justamente para levar os próprios estudantes presos.
Antes disso, muitos já estavam reclamando de abordagens, revistas e suspeitas.
A ideia de que a universidade possa ser um espaço livre de polícia provocou tamanha indignação, como se tivesse sido criada para proteger o sossego dos usuários de droga.
O conceito, todavia, nasce do princípio constitucional da autonomia universitária e de um histórico de forte controle e repressão política nos anos da ditadura.
Na democracia, o papel da polícia é o de garantir as liberdades, não de colocá-las em risco. A questão é de saber se a USP quer a polícia para proteger os estudantes, ou para se proteger deles.
O espaço de construção das liberdades, de contestação e de energias transformadoras, típico de um ambiente universitário, não pode ser simplesmente reservado para ordem e disciplina. A sociedade se ressentirá disso mais tarde.
O episódio mostrou também o esgotamento da política de guerra contra as drogas, cujos paradigmas fazem água por todos os lados.
A farta criminalização não vem trazendo qualquer alento à saúde pública que supostamente busca proteger.
O consumo aumenta, independentemente da proibição. E ao invés de se investir em saúde, o Estado gasta em repressão. Ainda assim, o tráfico não diminui e a violência se espalha pelos dois lados da lei.
Se o quadro já não fosse o suficiente para demonstrar o fracasso desta guerra, transborda ainda o esforço inútil que acaba por tumultuar a relação polícia-cidadão, extremamente cara para a democracia.
A criminalização dos entorpecentes ainda se sustenta, sobretudo, em uma reprovação moral.
Quando um aluno assina a lista de presença para outro, em tese pode cometer delito de falsidade, que é muito mais grave do que o porte de drogas. Mas quem imagina que policiais possam ser destacados para vigiar essa perversão tradicional da vida acadêmica?
Crimes existem e são praticados diariamente nos mais variados ambientes. O que faz uns serem mais vigiados e punidos que outros é o que se chama de seletividade. E é em geral nessa seletividade que se instaura a criminalização da pobreza e a criminalização da moral.
Recentemente, um homem foi condenado à prisão pelo furto de três latas de atum e uma de óleo. A lei não permite que ele simplesmente devolva os bens que subtraiu. Mas faz exatamente isso com o empresário sonegador que tem sua punibilidade extinta ao pagar o tributo.
Se ninguém pune tudo, escolher o que punir decide quem será preso. Todos fazem suas seleções, inclusive a polícia quando elege os suspeitos de sempre para abordar, dentro ou fora da universidade.
O último efeito perverso do episódio da USP é a condenação da política.
Não discuto aqui eventuais excessos, que possam merecer apreciação judicial - até porque não me seria prudente fazê-lo.
Mas contesto o consenso que vem se formando na reprovação à política estudantil. Ironias com seus slogans, críticas à partidarização, descrição de livros 'esquerdistas' nas mãos de estudantes, como se fossem armas.
Nós já vivemos este tempo de generalizada suspeição e é ingenuidade acreditar que ele está assim tão distante que não pode mais voltar.
Afinal, os militares também prometiam paz contra o radicalismo, limpeza contra corrupção, tranquilidade contra a baderna.
E sabemos onde isso foi parar.
Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.
Fale com Marcelo Semer: marcelo_semer@terra.com.br ou siga @marcelo_semer no Twitter
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