quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Resposta à Veja

Fonte: Rede Pense Livre

A Rede Pense Livre enviou correspondência à Revista Veja acerca da matéria de capa da edição de 31/10/2012. Veja abaixo a íntegra da carta à revista e um texto que responde os principais pontos abordados na reportagem:

À revista Veja

A matéria de capa da última edição da revista não cumpre a missão de informar o debate sobre o uso/abuso da maconha, pois polariza a discussão e confunde os leitores. A demonização da droga reitera a política de prevenção equivocada que afasta os jovens do diálogo.

É importante retardar a idade inicial do uso das drogas e evitar danos que o consumo precoce pode causar. Para diminuir o consumo, no entanto, é preciso ser pragmático e encarar o fato de que a maconha hoje é amplamente acessível aos adolescentes: sem regras de idade, sem controle de qualidade e vendida por pessoas que têm interesse em conquistar clientes para drogas mais pesadas. Ao contrário do que foi publicado, pesquisas da Organização Mundial de Saúde demonstram que é o traficante, e não a maconha, a porta de entrada para outras drogas.

O estudo citado na matéria diz que quando o uso da maconha inicia-se após os 18 anos, tais efeitos adversos do uso na adolescência não ocorrem. Isso sugere que a regulação possa ser  uma alternativa mais adequada para controlar o uso de drogas por adolescentes do que a proibição nos moldes atuais.

As políticas atuais de criminalização do consumo já provaram não ser capazes de atingir o objetivo maior de reduzir os danos causados pelas drogas aos indivíduos e à sociedade. O modelo de regulação do tabaco oferece caminhos para pensarmos na regulação da maconha.

É tempo de olhar as evidências científicas e a vasta gama de pesquisas que apontam alternativas às políticas de drogas e mostram como elas podem ser mais eficazes e humanas que as atuais.

Respondendo aos principais pontos:

À revista Veja

Nós, membros da Rede Pense Livre – Por uma política de drogas que funcione, consideramos que a matéria de capa da edição de 31/10/12 forneceu a seus leitores uma visão apenas parcial da complexa e multifatorial questão sobre o uso/abuso da maconha. Entendemos que uma visão parcial sobre tal droga não contribui para um debate racional, não ideológico, e pode, inclusive,  afastar os jovens do diálogo e dificultar que consumidores que venham a desenvolver uso problemático da droga recebam apoio adequado.

A Rede Pense Livre entende a complexidade da questão das drogas e tem convicção que a atual política com foco na repressão causa mais danos aos indivíduos e à sociedade do que o próprio consumo de drogas em si.

Sobre o artigo citado na reportagem, os autores apontam para uma maior atenção de políticas públicas e prevenção ao uso de Cannabis na população menor de 18 anos. Certamente nós, da Rede Pense Livre, estamos de acordo que é importante retardar a idade inicial do uso de drogas e evitar os danos que o consumo precoce pode causar aos adolescentes. Contudo, a proibição, ao igualar o consumo adulto e adolescente, impede que a política pública proteja os mais jovens. A proibição não controla o mercado. O êxito da politica anti-tabagista mostra que só a regulação o faz.

Para diminuir o consumo, precisamos ser pragmáticos e reconhecer que a maconha hoje é amplamente acessível aos adolescentes em qualquer cidade brasileira: sem regras de idade, sem controle de qualidade e vendida por pessoas que têm interesses puramente financeiros. Os consumidores são mal-informados e, quando enfrentam problemas, não pedem ajuda por medo da criminalização e do estigma.

Nesse sentido, o  estudo revela um fato interessante, não retratado na reportagem. A principal evidência é: “adolescent-onset users showed greater IQ decline than adult-onset cannabis users. In fact, adult-onset cannabis users did not appear to experience IQ decline as a function of persistent cannabis use1 (Meier et al., 2012). Este excerto demonstra que, de fato, adolescentes que iniciam uso de maconha nesta fase da vida podem apresentar efeitos colaterais evidentes como prejuízo cognitivo e perda de memória. Entretanto, quando o uso inicia-se após os 18 anos, tais efeitos adversos não ocorrem. Isso sugere que a regulação pdoe ser mais adequada ao fim de controle do uso adolescente do que a proibição nos moldes atuais, especialmente se comparado ao álcool e tabaco.

Diversas pesquisas de ponta divulgadas pela Organização Mundial de Saúde, entre as quais um estudo desenvolvido por Tarter e colaboradores, financiado pelo NIDA National Institute of Drug Abuse  e publicado na American Journal of Psychiatry (2006), demonstram que o contato inicial com outras drogas está vinculado à disponibilidade da compra de outras substâncias ilícitas e à convivência próxima com usuários de outras drogas. Estes dois motivos fazem com que o usuário regular migre do consumo unicamente da Cannabis para outras drogas.

Consideramos ainda que poderia ter sido citada pela reportagem uma importante pesquisa de 2010 publicada na The Lancet, revista médica de excelência, pelo Professor David Nutt, psiquiatra e neuropsicofarmacologista do Imperial College,  de Londres, que demonstra que não há critérios médicos que diferenciem drogas lícitas das ilegais, justamente porque a substância que mais provoca danos individuais é o álcool, antes mesmo da heroína e do crack.

A reportagem também não cita exemplos exitosos de uso medicinal da Cannabis em países como Israel, Holanda e 17 estados norte-americanos que têm programas de fornecimento regulado de maconha medicinal para pacientes de câncer, HIV e esclerose múltipla, entre outras doenças.

O bom senso e as evidências sugerem que as políticas atuais de criminalização do consumo não foram capazes de atingir o objetivo maior de reduzir o consumo e os danos causados pelas drogas aos indivíduos e à sociedade. O modelo de regulação do tabaco oferece caminhos para pensar sobre um modelo de regulação da maconha. As campanhas de conscientização e as restrições impostas nas últimas duas décadas à indústria do cigarro resultaram em uma redução de 50% no consumo de tabaco nas últimas duas décadas, com forte impacto positivo na saúde pública. 2

A Rede Pense Livre defende a regulação da maconha medicinal e do autocultivo de maconha, para permitir o acesso ao medicamento nos casos clínicos comprovados e romper o vínculo entre usuários e o comércio ilegal. Vários países do mundo estão se dando conta da necessidade de mudança na lógica de guerra às drogas. É tempo do Brasil abandonar o preconceito e olhar todas as evidências científicas com igual seriedade. Desta forma ficará claro que existem alternativas mais eficientes e mais humanas para reduzir os danos sociais do consumo de drogas.

1 “…adolescentes que iniciaram o uso nesta fase apresentaram uma grande diminuição no QI em comparação com o grupo que iniciou o uso na fase adulta. De fato, os indivíduos que iniciaram o uso na fase adulta não apresentaram um declínio no QI como um efeito persistente do uso de Cannabis.”

2 Estudo Saúde Brasil 2008, Ministério da Saúde, Brasília, 2009. Disponível em:http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/saude_brasil_2008_web_20_11.pdf