Muito se tem falado sobre a dependência química, que nada mais é do que a doença dos dependentes de drogas. Casos trágicos ocorrem com muita frequência em todo o mundo, vitimando pessoas de todos os níveis sociais. Apesar de a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerar o dependente um doente, muito preconceito ainda envolve a questão, pois a sociedade teima em ver como pessoas fracas e irresponsáveis os alcoólatras, os cocainômanos, os maconheiros e, agora, os consumidores de crack, além daqueles que se drogam com tranquilizantes.
O psiquiatra Mário Biscaia, que tem vínculo com um centro de pesquisas sobre dependência química, integrante da Universidade Rockfeller, em Nova York, aborda com profundidade o tema, constatando que o problema é mesmo uma doença.
– Por que uma pessoa procura consumir drogas? Apenas por carências psicológicas ou há também fatores orgânicos?
– Não existe um fator único. Há uma predisposição do meio social, da família, características psicológicas, como indivíduos com baixa tolerância à frustração ou com impulsos, além de uma predisposição orgânica, genética, à dependência química. Esta predisposição vem sendo provada nos últimos anos em função da descoberta das endorfinas, drogas internas produzidas por nossos organismos em situações de estresse e de dor, que promovem nosso bem-estar. Em estudo feito nos Estados Unidos, foi provado que algumas pessoas sofrem de uma alteração nesse metabolismo, produzindo menos endorfinas. As drogas então viriam a preencher o vazio deixado pela baixa produção de endorfinas.
– Quais são as drogas que criam dependência química?
– Qualquer droga psicoativa. Não há mais a antiga definição de dependência psíquica ou física. O quadro de dependência química é característico de uma compulsão de procura por drogas, e cada indivíduo tem uma escolha. Existem drogas mais pesadas, e cada uma tem um potencial de dependência. Por exemplo, o crack, que é cocaína fumada, tem um potencial de dependência de quase 100%. O da cocaína aspirada fica em torno de 60% a 70%. O álcool, em torno de 10%. Ou seja, de cada 100 pessoas que bebem, 10 vão se tornar dependentes de álcool.
– E quanto às ‘bolinhas’? São anfetaminas ou antiolíticos?
– As duas formas de comprimidos mais usadas são as anfetaminas, por causa dos remédios para emagrecer, e os tranquilizantes, tipo benzodiazepínicos, que são mais comuns ainda. Esta é a quarta droga mais usada. A primeira é o álcool; a segunda, o tabaco; a terceira, os inalantes (as colas, o éter, etc.); a quinta, a maconha; e a sexta, a cocaína.
– O tratamento por abstinência total, na verdade, não é novo. Há muitos anos vem sendo adotado pelos Alcoólicos Anônimos. Esse ainda é o único caminho possível?
– O que os Alcoólicos Anônimos, movimento fundado em 1935, perceberam só agora está sendo cientificamente provado. Não gosto dos tratamentos que se originam de posições radicais. Acho que todo tratamento deve começar por um diagnóstico bastante apurado do caso, para que se saiba se a dependência química está associada ou não a alguma outra patologia, a um quadro fóbico, ansioso, depressivo, porque, uma vez instalado o quadro de dependência química, está comprovado que o indivíduo cria uma memória biológica e, se voltar a usar a química, a compulsão volta.
– E o que fazer?
– A abstinência é o alvo que se deseja atingir, mas devemos elaborar métodos para trabalhar cada caso depois de um diagnóstico profundo de cada pessoa. Não é o que acontecia antes, quando se tinha uma visão dogmática. A dependência química ultrapassou a visão psicológica, meramente psicanalítica, que via a dependência apenas como um sintoma. Era feita uma terapia para tratar o sintoma, o indivíduo ficava bem e podia ser um usuário apenas social daquela droga. Isso está ultrapassado! Dessa visão passou-se para outra dogmática: a de que todos os dependentes químicos são iguais e têm de se adaptar a um único modelo de tratamento. Hoje existem alguns modelos e, feita a avaliação individual, fica-se sabendo qual tratamento o indivíduo aproveitaria melhor...
– Isso explicaria, por exemplo, o caso de Marilyn Monroe, que, apesar de fazer tratamento psiquiátrico e psicanalítico, morreu de overdose?
– Não tenho conhecimento específico desse caso, mas tenho o palpite de que foi um acidente. Talvez ela já tivesse um quadro de intolerância aos remédios, não conseguisse dormir e tenha tentado uma dose maior. Essa questão de comprimidos é um problema muito sério. Todo mundo só vê cocaína, mas o número de acidentes com as drogas lícitas é bem maior.
– Existem medicamentos que podem ajudar o dependente na fase inicial de abstinência?
– Devido aos avanços da psicofarmacologia, determinado tipo de medicamento ajuda no início do tratamento, se a pessoa desenvolveu um quadro de depressão neuroquímica com diminuição de alguns neurotransmissores. Aí, o emprego de antidepressivos pode ajudar se a pessoa está muito espoliada também de complexos vitamínicos e aminoácidos. É preciso igualmente observar se o dependente químico tem alguma outra patologia. Ele às vezes usa droga porque não está sendo medicado adequadamente devido a outro problema. Ele pode ser dependente químico por ter uma depressão orgânica. Então, vai precisar tomar antidepressivos, para não procurar a droga.
– Por que ainda são baixos os índices de recuperação de dependentes químicos?
– Porque temos poucos locais especializados para tratamento de dependentes químicos. A maioria só é atendida em dois lugares: nos pronto-socorros, em situação de emergência, ou em clínicas psiquiátricas, de maneira inadequada. É preciso criar modelos separados. O modelo das unidades corretas é o dos centros de recuperação e tratamento baseados no modelo americano, com a internação voluntária, com avaliação médica profunda e padrão adaptado à nossa realidade. Este modelo tem alcançado um índice de recuperação de 30% de adultos e até de 60% de adolescentes.
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