segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Maconha expõe luta cultural e política

Fonte: Blog do Luis Nassif

A tempestade se acirrava e as folhas das árvores e a maconha eram as alternativas para boicotar a indústria.

Por Rafael M. Zanatto

Quando um cego grita pra outro cego, os dois
tropeçam na mesma pedra
.
Vincent Van Gogh

De volta, com os dois pés firmes no chão, na terra que um dia foi dos papagaios. Trago mais que um “trago” de lembranças de Amsterdam. Mas não esqueci por lá a sistemática, que por mais que queira dissolver, ela corrói por dentro todas as possibilidades de criação. Vai e volta desgraçado, que não consegue falar das bicicletas que rasgam a cidade pra lá e pra cá. Mas os carros são pragas que não morrem fácil. Alguns persistentes motoristas se arriscam a atropelar uma multidão de ciclistas. As regras já estão incorporadas e qualquer deslize, qualquer desatenção, como atravessar desavisado pela ciclovia, uma voz que rasga o vento velozmente de pronto adverte-lhe: Veja por onde anda! O sistema é planejado, a cidade, plana, os canais, cheios de água e barcos, casas que flutuam. Flores de todas as espécies, multicoloridas, pés de maconha em escolas de cultivo. Turistas, quantos turistas para conhecer a cidade “mais livre do mundo”, onde a prostituição é legalizada e a maconha, se pode fumar em cafés.

Estarei eu falando do falanstério de Fourier ou da Utopia de Morus, que adormece ao som de Blues e acorda ao som de Jazz? Relíquia da contracultura, Amsterdam é mais que cidade de malucos, pervertidos, drogados de todas as espécies, turistas da droga que se reúnem como os bucaneiros na ilha de Tortuga. É uma cidade palco de lutas acirradas entre a população e as forças reais. Juventude, vontade, anos 60. Um amontoado de provocadores, vanguarda estética, happenings no menino de Lieverdje, escultura de Carel Kneuman na praça da Spui. Bela oferta da indústria do tabaco. A opulência holandesa insuflava o anticonformismo e a tradição anarquista florescia na mente de um grupo que se denominou “Provos”, mas não se conteve na luminosidade insuficiente da vanguarda. A desobediência civil alastrou-se e as lutas culturais foram violentamente reprimidas a golpes de sabres. Membros decepados adubariam o solo holandês. A juventude incendiária não se esquivaria de intervir no espetáculo e a imagem foi-lhes o instrumento.

Seria uma desilusão com a indústria e com o consumo? Pergunta retórica, a passividade saía de moda e logo as manifestações estéticas contra a indústria e propaganda empesteavam a cidade maçã. Contra a indústria do cigarro, levantou-se Robert Jasper Grootveld, fundador de um templo que tinha como ritual a execução de Happenings contra o vício disseminado e inconseqüente da nicotina. Do templo “Dependência Consciente da Nicotina”, os transeuntes podiam ouvir os fiéis entoando mantras como “cof cof cof”, e os K’s negros espalhavam-se pelos cartazes da indústria do tabaco em Amsterdam. A atividade de Grootveld rendeu-lhe duas prisões, mas os Kanker não saíam com uma pancada de chuva.

A tempestade se acirrava e as folhas das árvores e a maconha eram as alternativas para boicotar a indústria. Pobres empresários do tabaco. O que teriam feito eles para ser alvo de tanto estardalhaço. Eram eles o símbolo da manutenção do status quo, a empresa onde poderiam trabalhar pelo resto de seus dias em uma máquina desgraçada que não cessava em explorar as forças vitais de seus trabalhadores. A revolução cultural estava em curso e na estátua do pobre menino de rua, tornou-se o epicentro de uma turba de baderneiros pervertidos, e não se enganem anarquistas profundamente influenciados pelo dadaísmo e afinados com as tendências artísticas de seu tempo. O dadaísmo de Grootveld tomava o menino de Lieverdje, palco de danças, fogueiras, teatros, jogos e discursos dos mais absurdos, em contestação à estética discursiva dos políticos profissionais.

O vazio de ter tudo menos a liberdade de fazer tudo proporcionou uma mistura química fabulosa para a movimentação explosiva. Os sabres só ampliavam a insatisfação da juventude, que de ter tudo, nada mais tinha a perder. Os profetas faziam fila e logo uma comunidade de idéias fazia da repressão às suas atividades o motor propulsor para seu desenvolvimento. Duijin e Stolk lançam às ruas a revista “Provos”, distribuindo-as clandestinamente no meio dos jornais conservadores. A revista defendia uma conduta anti-social, o nomadismo, a arte, a ecologia e o fim da monarquia; resposta violenta ao consumismo levado às últimas conseqüências. Sua plataforma política concentrava-se em substituir a “caixa peidorenta de ferro” pelas bicicletas brancas, espalhadas pela cidade para uso público e gratuito, doadas pelos freqüentadores da Spui. A emancipação sexual, a legalização da maconha, o fim da propriedade privada e de qualquer forma de proibição estava entre as linhas gerais dos planos da juventude, que se aglomerava entorno dos Provos.

O jornal conservador Telegraph em 1991 lamenta que “a sociedade holandesa nunca se recuperou das loucuras hippies, do “Flower Power” e das viagens para fora da realidade provocadas pela droga. Enquanto todas as sociedades ocidentais foram trazidas de volta à Terra, a sociedade holandesa ficou nas nuvens”. Discordar do Telegraph não basta e o argumento ideológico demonstra-nos ser insuficiente para analisar. Cabe um empirismo naturalista, o olhar do estrangeiro que provém de um país conservador que impede marchas, fecha universidades, destina a verba pública a aprisionar grande parte de seus cidadãos. Os críticos do Telegraph se esqueceram de mencionar que Amsterdam é um grande playground do consumo de drogas. Tem pra todos os gostos, sabores, haxixes em pacotes ou na balança. Coffee shops para maconheiros locais, para fumadores do mundo, para desavisados que nunca puxaram um fumo e que chegam sem saber fazer um cigarrinho. O Coffee Shop Central é um café que serve para velhos marujos e estivadores. A qualidade do produto é melhor e a forma de venda é mais simples. Um grande brutamonte de cabelos longos lhe apresenta seus produtos de cores das mais amarronzadas às mais negras, requerendo o passaporte. Já em outros, como o “Bulldog”, mais para marinheiros de primeira viagem, há também baseados bolados em cartelas, algo que achei extremamente tragicômico, mas acessível a um grande número de turistas que superam suas convenções sociais para saborear a erva proibida. Ali, o paraíso não lhes será tomado. Não se peca onde a legalidade da cannabis impera. As lojas de souvenires estão por todos os lados e a temática da cultura cannábica está totalmente mercantilizada. Lojas de sementes especializadas são os melhores lugares para comprar as premiadas no “Cannabis Cup”. Até a idéia das bicicletas provocadoras foram apropriadas pelo mercado e muitas empresas as locam para os turistas. A revolução cultural parece ter sido totalmente apropriada pela cultura do consumo e Amsterdam lhe é monumento.

A vitória parcial das lutas culturais e ou ecológicas se faz a partir de sua imediata inserção na lógica da sociedade do consumo, e este parece ser os objetivos das lutas de nosso tempo. Esse tempo sem ideologia. O pluralismo transforma-se na tábua de salvação do pensamento político, uma ideologia de uma era sem ideologia. Isso não quer dizer que as noções de diversidade não são falsas nem contestáveis. O mundo natural, o físico e o cultural são caracterizados pela diversidade, e nos regozijamos mais com as diferenças do que com a uniformidade, mas essas idéias não podem ser encaradas com dogmatismo, e a abrangência do termo fundamentado pela inclusão, é uma política que parece substituir a política. Se tudo é político, se tudo é cultural, tudo o é e nada existe ao mesmo tempo e esta combinação me parece o campo fértil para florescer a conformidade. Não devemos nos esquivar do fato de que a ascensão das lutas culturais está associada ao declínio da utopia, um indicador do esgotamento do pensamento político interessado nas transformações estruturais que eliminem a exploração do homem pelo homem. Maldito refluxo histórico. A partir do momento em que a cultura é definida como um conjunto de ferramentas, códigos, rituais e comportamentos, cada grupo ou subgrupo, e não apenas cada povo, terá sua cultura. Múltiplas culturas no interior da sociedade do consumo, a repousar sobre as mesmas infra-estruturas. O segredo da diversidade cultural parece ser sua uniformidade econômica e política.

Desenho de Calma

As lutas culturais, em específico, as antiproibicionistas ou pela legalização da maconha, não se interessam pela revolução cultural, e sim batalham por um espaço para respirar fora da ilegalidade. A cultura cannábica está a todo o vapor, e produz lucros fabulosos nos países em que está legalizada. O comércio é dos mais lucrativos, mas a opção proibicionista lucra com a ilegalidade, e como efeito colateral: violência generalizada. Há mais de meio século, a guerra contra as drogas nos moldes dessa civilização padronizada e globalizada é das que mais cometem o assassínio e o encarceramento. Quem está a ganhar com essa máquina diabólica? É melhor saltarmos de cabeça nos anos 20, história dos nossos grandes amigos estadunidenses. É necessário dizer que, tanto lá quanto cá, a proibição assenta-se em uma ideologia profundamente moralista e sem escrúpulos, interessada na contenção social de grupos minoritários como os negros, indígenas, e nos states, também dos mexicanos. Mas a depressão que se seguiu ao crack da Bolsa de New York e com o New Deal, as minorias começaram a ascender socialmente, ocupando espaços na sociedade reservados aos brancos, e naturalmente, trazem consigo nesta escalada o hábito de consumir maconha, e seu uso começa a se disseminar entre os brancos. Além da questão racial ou moral, devemos compreender que a proibição não se fez apenas no campo ideológico, mas também com a atividade de uma burocracia montada para atender as demandas da política de repressão ao consumo de álcool. A lei seca dos anos 20 criou dois aparelhos mastodônticos: a máquina burocrática federal, encarregada de coibir o tráfico de destilados alcoólicos e o crime organizado, que auferia grandes lucros com o mercado negro de bebidas.

Nos anos 30, ambos os grupos se aperceberam que a liberação do consumo de álcool era inevitável e passaram a trabalhar na manutenção de seus lucros e privilégios. As campanhas da Liga da Decência serviram de plataforma para J. Edgar Hoover ascender à chefia do FBI, a partir de seus sucessos estratégicos contra o comércio de bebidas. Esse superburocrata amealhava poder a partir da máquina de estado e afirmava possuir um arquivo secreto com todos os podres dos políticos estadunidenses. Anslinger, seu antigo adversário, na luta pela sobrevivência pessoal após o fim da lei seca, é nomeado para o cargo de comissário do Bureau de Narcóticos e se apercebe do enorme potencial de suas novas funções, sendo capaz de gerar espaços maiores que a proibição do álcool.

A orquestração proibicionista, composta pelo crime organizado e brancos racistas, encontrou em Anslinger seu maestro. Articula um lobby conservador na assembléia dos deputados e garante, graças às suas influências e pressões, amplos espaços na imprensa. Ele cria o problema, atemoriza com as conseqüências eventuais e goza as glórias de combatê-lo. Com o Marihuana Tax Stamp Act, a maconha é proibida em todo o território americano, e temos como conseqüências imediatas a reativação de departamentos fechados com o fim da lei seca a partir da liberação de pesados recursos e Anslinger tem novo cacife para sustentar seu ego na luta contra Hoover. Mas as coisas não param por aí e recrudescem as manifestações racistas contra latinos e negros, que estariam a envenenar a laboriosa juventude americana. E, por fim, o crime organizado logra sustentar sua grande estrutura, tão duramente montada nos anos de repressão aos alcoólicos, através da expansão e aumento dos lucros, como a colocação de opiáceos no mercado. Os preços da maconha vão aos céus, e a maconha torna-se a porta de acesso ao tráfico. Na ONU, a erva é inserida na Carta de Princípios como inimiga a ser combatida e debelada, e os traíras da vez foram os EUA, Venezuela, Brasil e Gana.

Pra acabar com esse texto de uma vez, cabe dizer que o uso da cannabis está completamente dessacralizado, sem rituais preestabelecidos [salvo muitas exceções], mas passível de ser adquirido nas esquinas, para o consumo hedonista, como recurso de lazer ou recurso estimulador da criatividade, ou indiretamente, num gesto de recusa aos padrões estabelecidos. Também não se encontra maciçamente incorporado nas práticas médicas, mas as pesquisas avançam e é ela a erva largamente recomendada para reduzir as náuseas e aumentar o apetite, geradas invariavelmente pelos tratamentos de câncer, e aos poucos os artistas reincorporam-na em seu processo de criação. Mas afinal, o problema reside em sua maior parte na proibição, que mantém a alta lucratividade do sistema de segurança, enquanto a saúde pública fica às moscas, ou reduzida a conglomerados de clínicas privadas para o tratamento de dependentes. Os religiosos que me perdoem, porque aqui não vou falar do uso religioso da maconha, não por ignorar a questão, mas para me concentrar exclusivamente no uso da diamba e das outras drogas na sociedade do consumo. Nessa modalidade social, desprovida de rituais ou ordenamentos de uma coletividade específica como o clube de diambistas do Maranhão, aparece como problema o vício. Então vamos ignorar cinco mil anos de história e nos concentrar nessa história do tempo relativamente presente.

Ninguém mais soube sobre drogas no ocidente do que William S. Burroughs, pelo menos é o que se diz nos guetos sobre o mais ilustre viciado de nossa cultura. O maior dos junkies, viciado em heroína e em tudo o que se pudesse provocar qualquer sensação distinta da cruel realidade. Freqüentador das casas de ópio, antes de Nick Tosches pudesse decretar seu fim. Mas não é porque um turista americano não as encontrou que elas deixaram de existir. Burroughs no Marrocos buscava nos opiáceos o tratamento de seu vício em heroína. Em 1953, Burroughs fizera a mesma busca na América do Sul, ali pro lado do Equador. E disponibiliza aos leitores as representações sobre o que sentia durante o período de desintoxicação. “Paranóia do início da abstinência… Tudo parece azul… Carne morta, pastosa, descorada” e nos pesadelos da abstinência podia ver “um café forrado de espelhos. Vazio… À espera de algo… surge um homem na porta lateral…um árabe baixo e franzino” e por aí vai a alucinação desse pesquisador, em busca da cura do vício em heroína. Durante sua busca, vê no Yage a possibilidade de abandonar as três picadas diárias. O colecionador levava consigo uma mala de substâncias das mais variadas, para controlar todos os impulsos possíveis de seu corpo. Em busca do líquido que o desintoxicaria, buscou os xamãs, que, para ele, prepararam a tão buscada poção. Mas, ali, naquele culto ritualístico, Burroughs sofre com as náuseas provocadas pelo chá, efeito que hoje se sabe esperado quando a substância entra em contato com um organismo intoxicado. No caso deste escritor de quem examinamos a trajetória, nada mais certeiro do que o chá o derrubar no chão e o fazer vomitar, devendo ele aceitar a ação daquela substância para completar o rito.

Porém, Burroughs, em sua obsessão por estar no comando de seu corpo como uma máquina, ingere em meio à crise substâncias industrializadas, cujo efeito pode controlar seus espasmos e náuseas. Neste episódio narrado em uma carta para Allen Ginsberg, ficam evidentes os limites entre rito e uso ocidental. Burroughs constitui em si uma metáfora da separação entre ritual e entretenimento. Em contrapartida, florescem estruturas de sociabilidade, transpassadas por fluxos e impulsos aleatoriamente humanos. O uso ocidental ou na sociedade do consumo das drogas é hoje uma cultura, não apenas da cannabis, mas todas as outras, inclusive das legalizadas como o álcool e o cigarro. São lutas culturais que têm por objetivo a legalidade, suprimindo as políticas proibicionistas em benefício da saúde, da qualidade de vida, educação, da criação legal de um mercado, que aponta talvez para uma atenuação da violência gerada pela guerra às drogas.

A luta cultural dos anos 60, contra o “American Way of Life”, valeu-se das drogas como instrumento político, como possibilidade de emancipação pessoal e coletiva, direitos civis, liberdade. Mas essa onda quebrou, deu tudo de si, e retrocedeu, restando apenas os resquícios de seu impacto na costa. O que Hunter S. Thompson metaforiza acima é a recuperação das lutas sociais pela sociedade do consumo. As lutas hoje não lutam pela transformação da sociedade embasada em um sonho hippie, de amor. Já se foi a época das revoluções, mas elas não parecem cessar de reflorescer, dando profundos impulsos pra frente. O que cabe é saber até que ponto a infra-estrutura está pronta para recuperar os impactos da luta social. Não podemos vislumbrar um futuro sem analisar esse movimento, e as lutas da cultura cannábica ou das drogas em geral não pretendem criar um modelo infra-estrutural, mas transformar a sociedade em noções embasadas em um número bastante grande de pesquisas atualizadas, para reduzir ou abolir a política de “guerra às drogas”, transferindo seus onerosos custos para o investimento em saúde pública. Tal noção construiu-se historicamente diante do completo fracasso da política de Anslinger.

A sociedade brasileira, especialmente as autoridades da PUC, parecem ignorar que eles não podem segurar um processo histórico que cresce a todo o vapor, e o impedimento do “I Festival de Cultura Canábica” é mais uma pequenina pedra na luta pela legalização. Mas devemos entender que as lutas a favor da legalização não são recentes, e se estendem desde sua proibição. Um exemplo é o “I Simpósio Carioca de Estudos Sobre a Maconha”, realizado na IFCS – UFRJ em 1983, durante o período da abertura política no Brasil. Existiam também associações para a defesa de usuários outrora presos e agora presos até segunda ordem. Cabe aos movimentos culturais prosseguirem os trabalhos, e às autoridades, mais coerência. Devemos ampliar a estratégia que vem tomando cada vez mais corpo, que é a ebulição de células de debates. O caminho que nos conduz a uma sociedade democrática deve ser o mesmo que liquida a ignorância e a desigualdade de seu seio.

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