sexta-feira, 15 de julho de 2011

“A maconha sempre esteve presente na cultura brasileira”

Fonte: Revista Muito

No primeiro dia de funcionamento do Caps Gey Espinheira, em agosto de 2010, uma moça usuária de drogas chegou com uma malinha dizendo que estava disposta a se internar. O psicólogo João Martins, 30, coordenador do Caps, explicou que ali o tratamento era outro, com o sujeito interagindo com a sociedade e não apartado dela. A moça foi embora. Até hoje essa mudança de paradigma pega desavisados de surpresa. Muitos aceitaram o desafio e estão lá. Serviço pioneiro na Bahia, o Caps Gey Espinheira nasceu para cuidar de crianças e adolescentes, mas estendeu o atendimento a outros públicos. Hoje, são 111 pessoas, de 12 a 53 anos.  Com estrutura privilegiada na rede pública de saúde, oferece oficinas de teatro, pintura e música, além de atividades esportivas e sessões de acupuntura. Nesta entrevista, João defende a legalização do consumo e venda de drogas no Brasil, especialmente da maconha, “menos nociva que o álcool e o tabaco”.

O STF liberou a realização das marchas da maconha. Apesar de ser um avanço no debate, não se vê um envolvimento maior da população nessas passeatas.
Nem os próprios usuários compraram isso ainda, não querem sair do armário. Ninguém quer se apresentar para dizer: eu sou fulano, sou usuário de maconha. Aliás, se você diz isso, toda credibilidade que conquistou em determinada área pode estar em jogo, porque o usuário de uma droga ilegal ainda é muito associado à ideia de alguém irresponsável, marginal. Mas penso que a marcha da maconha não deva ser um movimento só de usuários. Deve ser algo que tenha importância para a sociedade como um todo, porque ali o que se discute é de que forma nós pretendemos lidar com a questão das drogas. Nós sabemos, por dados epidemiológicos, que o álcool e o tabaco são mais nocivos à saúde que a maconha. Então temos que problematizar por que o bode expiatório da sociedade tem que ser a maconha ou qualquer outra droga ilegal. O grande problema da droga está na própria ilegalidade. A gente precisa discutir muito essa questão, e depois disso um plebiscito seria interessante.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso está capitaneando a discussão em torno da maconha, mas ele fala em regularizar e não em liberar. É um discurso meio truncado. O senhor é a favor da legalização de todas as drogas?
Acho que deveríamos pensar em todas as drogas. Claro que, para o contexto que a gente vive hoje, a maconha é a substância que está mais próxima disso. Mas acredito que o fundamental, quando a gente fala em legalizar uma droga, é poder informar claramente as pessoas sobre os riscos a que elas podem se expor no contato com essas substâncias. Raimundão foi um dos maiores traficantes de Salvador. Quando ele foi preso, se fez uma análise laboratorial da cocaína que ele vendia e algo que já era suspeito se tornou evidente. Havia cerca de 30% de cocaína e o resto da composição era de pó de mármore, pó de vidro, eno, paracetamol, várias coisas. Então, o usuário está correndo um risco que ele nem sabe. E isso vale para outras substâncias também. Quando as pessoas compram ecstasy, estão buscando o MDMA, mas nada garante que ali tenha MDMA. Ao contrário do tabaco, que está ali no maço, dizendo toda a composição do cigarro. Isso é algo importante. As informações sobre drogas hoje vão muito no caminho de culpar o usuário e de colocar como se não houvesse um prazer. Se isso fosse verdade, não tinha tanta gente consumindo droga. Como cada um tem sua droga, não acredito que a legalização vá aumentar o número de usuários. Quem gosta de álcool vai continuar usando álcool, quem fuma maconha vai continuar fumando maconha. O que eu acho é que as pessoas vão poder se assumir, então isso talvez dê uma impressão de aumento. O que vai mudar é que as pessoas vão poder comprar a substância em local seguro, os pais vão poder conversar mais claramente com os filhos sobre isso, de modo que eles estarão mais seguros dos riscos.

Que modelo de regularização ou legalização o Brasil deveria adotar?

Acho mais interessante o modelo da Espanha que o da Holanda. Na Holanda, a substância em si não foi legalizada. Você, na verdade, separou o comércio de maconha das outras drogas ilegais, criou um dispositivo em que as pessoas vão nos coffee shops, podem comprar determinada quantidade. A Espanha também não legalizou, mas tem uma regulamentação das possibilidades de plantio e consumo. As pessoas podem plantar em casa, o que acho muito interessante, porque você controla a qualidade do que vai consumir. Lá também existem cooperativas de cultivadores. Acho que o Brasil tem que buscar um modelo próprio, mas se a gente caminhar para a legalização, vamos atingir o tráfico num ponto nevrálgico. Ganha-se muito dinheiro com cocaína, mas a maconha ainda é a droga ilegal mais vendida. Essa medida acabaria com o comércio ilegal de maconha? Não, da mesma forma que ainda há contrabando de cigarro, de uísque… Tem também o exemplo dos EUA, que autorizaram o uso terapêutico da maconha, o que também é uma possibilidade para nós. O fato é que a maconha sempre esteve presente na cultura brasileira. O problema foi quando se identificou que o consumo maior se dava entre escravos, ex-escravos, e aí, se você proíbe a maconha, cria um mecanismo de controle social sobre determinado grupo. Esse é um ponto crucial para entender essa situação.

Isso persiste com a legislação que não pune o usuário com prisão, mas não define limites entre usuários e traficantes…
Exatamente. E o que a gente vê? Um processo gradativo de criminalização da pobreza. Você mantém um artifício perigoso em que se pode até justificar a execução de jovens negros sob o argumento de eles serem traficantes ou usuários, como a gente vê nesses programas de televisão pinga-sangue que passam meio-
-dia.  Não é a quantidade que define se a pessoa é traficante ou usuária. A primeira diferenciação disso já se dá na abordagem da polícia, que passa por um recorte étnico e social. É diferente se pega um jovem branco com um cigarro de maconha ou um jovem negro. Existem vários locais em Salvador em que o uso de maconha é tolerado. Na Jam no MAM, todo mundo sabe que se pode usar maconha e ninguém vai ser abordado, porque é um local que é frequentado pela classe média. Em outros lugares não pode. Então o uso da maconha em si não é o problema. Outro ponto é que a legalização não vai acabar com a violência. Para isso, é preciso ter políticas públicas efetivas. Se você não melhorar a vida das pessoas, essa realidade não vai mudar. O tráfico hoje é tão importante porque dá glamour e dá dinheiro. Você tem aí meninos de 16 anos que estão ganhando mais que o pai e a mãe juntos. Com as taxações geradas pela legalização, seria possível aumentar os investimentos em educação, saúde. Garanto que as pessoas que têm problemas de saúde por causa do uso da droga são a minoria entre os usuários. Diminuir ainda mais esse número é possível. Achar que a gente vai viver num mundo sem drogas não é possível.

Mas essa minoria de que você fala é bastante visível. É comum ver o desespero das famílias sem encontrar uma rede de saúde que as ampare. Como legalizar se não há essa retaguarda?
Serviços como o Caps trabalham com uma lógica de tratamento que é trabalhar com o sujeito na sociedade, e não excluí-lo. Esse serviço tem uma resposta muito boa, mas é de médio e longo prazos. Se a gente investir mais em dispositivos como esse, poderemos dar uma resposta melhor. Hoje o Estado de fato não tem o aparato que dê conta de oferecer o suporte necessário. Mas creio que até o processo de legalização, que não é de um dia para o outro, isso se estruture. Nessa questão que você falava da mídia, acho que há muitas vezes uma espetacularização dessa situação. O maior problema que recebo aqui são pessoas que usam algum tipo de droga e têm um problema social enorme, de falta de alimentação, moradia, trabalho, e aí o uso da droga vem como algo que tampona essas faltas. Se você trabalha com esses outros aspectos, muito provavelmente você melhora o consumo também. Há uma proposta de o SUS investir em comunidades terapêuticas, o que, para mim, é um grande equívoco. Não sou contra essas comunidades, mas a internação deve ser o último ponto, algo temporário, de 10, 14 dias, para quem está em crise aguda. O que acontece nessas comunidades é que você cria um ambiente de laboratório. Fora do convívio social, a pessoa consegue parar de usar a droga, mas quando sai, os problemas que ela tinha antes continuam. E aí sustentar a falta da droga é difícil. Nossa meta aqui no Caps é melhorar a qualidade de vida das pessoas. Deixar de usar droga não é precondição para o sucesso do tratamento. O que a gente quer é que o sujeito ressignifique o uso da droga, de modo que ela não seja mais a questão principal.

Vou insistir nessa questão porque a sensação que se tem é  que os dependentes, como os usuários de crack do Pelourinho, estão abandonados pelo Estado.
Quando alguém está numa situação de rua, a tendência da gente é achar que tirar da rua é resolver o problema. Mas vários deles não querem sair. O Caps não é solução para tudo. A gente precisa ter mais serviços, como o Consultório de Rua, que vai ao encontro dessas pessoas levando informações de saúde; precisamos de uma rede de abrigamento, para aqueles que não quiserem estar na rua; leitos de desintoxicação nos hospitais, para as pessoas que estiverem em crise de abstinência em overdose. Tudo isso que eu falei não é da minha cabeça. Existe em editais do Ministério da Saúde, mas a implantação é complicada.

Qual é o perfil das pessoas que procuram o Caps?

A maioria vem encaminhada por outros serviços. Em alguns casos, os familiares chegam antes do usuário e aí a gente faz uma visita domiciliar para conversar. Nosso trabalho tem como ponto fundamental criar uma relação de confiança. Somos um serviço de portas abertas, ninguém está aqui obrigado. A partir do momento que ela escolhe se tratar, passa a ser corresponsável pelo tratamento. Isso é fundamental, porque implica o sujeito no uso.

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