Fonte: Estadão
Daniel de Barros
Volto de férias e me deparo com a capa da Veja mostrando que a medicina “acaba de descobrir” que maconha faz mal. Sério? Quer dizer que colocar fogo em alguma coisa e ficar respirando a fumaça pode ser prejudicial à saúde? Como ninguém descobriu isso antes?
Acho muito interessante esse movimento de colocar na conta da medicina a responsabilidade pela proibição de qualquer coisa quando fica comprovado que algo “faz mal”. Isso não vale só para as drogas – vai de alimentos a hábitos, do corpo à mente. Com relação ao uso de substâncias, em particular, a autoridade é delegada na maioria das vezes ao psiquiatra, com argumentos na linha “não me venha pedir para essa droga ser liberada porque os médicos já comprovaram que vicia e faz mal”.
Eu não vou advogar a liberação nem a proibição desta ou daquela droga, mas é preciso criticar esse tipo de argumento, que tenta simplificar grosseiramente a questão, minimizando o problema que, no fundo, é de uma complexidade que não cabe numa revista semanal, num jornal ou num blog.
Em primeiro lugar, a definição do que é lícito ou ilícito usar numa sociedade não pode se dar com base só em “descobertas científicas”. A ciência, por definição, tem que ser “falseável” – ou seja, é preciso que seja possível desmentir um achado para que ele seja considerado científico. Se não for possível testá-lo e negá-lo, não é ciência, é dogma, religião. Logo, descobertas científicas são mutáveis, e estabelecer o que é certo ou errado com base nelas é construir leis em solo instável – basta ver o exemplo do ovo, do café ou do chocolate – numa época a ciência canta suas virtudes, tempos depois condena seu consumo, e agora volta a recomendar seu uso. É assim mesmo, o conhecimento científico muda muito, tornando difícil estabelecer prescrições morais a partir dele.
Além disso, a adoção de qualquer comportamento é sempre uma questão de risco x benefício. Comer, dormir, fazer sexo, usar drogas ou tomar remédios, submeter-se a uma cirurgia, exercitar-se – todas as atividades humanas trazem riscos (engordar, ficar vulnerável, morrer, ter efeitos colaterais) e benefícios (repor energia, descansar, ficar mais disposto, livrar-se de uma doença). A sociedade opta por estimular algumas coisas e proibir outras não é em função de que elas possam “fazer mal”, mas sim se o risco desse mal é compensado pelos benefícios que traz. Drogas como heroína, por exemplo, eram vendidas livremente como remédios para tosse, numa época em que a única coisa que se podia fazer para combater a tuberculose era diminuir seu sintoma mais visível. Quando a ciência provou que ela viciava, o uso não foi banido, foi apenas exigido receita médica. Décadas passaram antes que a droga fosse proibida, pois mesmo já se conhecendo seus males, esses eram superadas pelos benefícios nos cálculos da sociedade. Hoje, sabe-se que a Ritalina, remédio para déficit de atenção, pode viciar e também ter efeitos colaterais importantes, mas precisamos tanto de foco em nossos dias que optamos por manter seu uso legal, exigindo prescrição médica – como será que o futuro julgará essa decisão?
Meu ponto é: liberar a maconha, proibir o tabaco, restringir o álcool ou recomendar corridas diárias são apenas superficialmente decisões médicas. Não nego que o papel do conhecimento é importante nessa equação, mas é preciso ter a clareza que as descobertas científicas são apenas uma das variáveis a pesar nesse cálculo se quisermos aprofundar realmente esse debate.
*Daniel de Barros é psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC), onde atua como coordenador médico do Núcleo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica (Nufor). Doutor em ciências e bacharel em filosofia, ambos pela USP.
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