Fonte: Época
Roteirista de documentário com Fernando Henrique Cardoso, sobre a descriminalização das drogas, lança ONG para propor políticas públicas
O documentário Quebrando o tabu causou impacto quando foi lançado no Brasil no ano passado. Dirigido por Fernando Grostein Andrade e conduzido pelo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o filme, que trata da descriminalização das drogas, levou mais de 20 mil pessoas às salas de cinema. Agora, a discussão saiu das telas. Criadores e padrinhos do filme – entre eles o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – fazem parte da Rede Pense Livre, que será lançada nesta terça-feira (18). Ilona Szabó, coordenadora do projeto, fala a ÉPOCA sobre as bandeiras e objetivos da ONG.
ÉPOCA – Por que criar a Rede Pense Livre?
Ilona Szabó – Tive a oportunidade de trabalhar com projetos internacionais sobre o tema e achei que nosso debate, no Brasil, estava enviesado para o lado errado. Ainda estamos discutindo se o uso de drogas faz bem ou faz mal. Já sabemos que as drogas, lícitas ou ilícitas, podem causar danos. A verdadeira discussão sobre a política de drogas não conseguiu chegar aqui ainda. Queremos ajudar a aprimorar o debate e qualificá-lo, direcionando isso principalmente para a faixa etária que vai ajudar a implementar essa mudança, os jovens adultos. Essa é uma causa da sociedade, e não só de quem trabalha com violência. É uma questão muito maior.
ÉPOCA – Quais são as ideias da ONG?
Ilona – Partimos de uma premissa de que o usuário não é criminoso. O primeiro passo seria descriminalizar as drogas. Já está provado que o consumo não aumenta após a descriminalização. Depois, é preciso atender esses usuários e direcioná-los a um sistema de saúde que precisa se preparar melhor para recebê-los. Ainda faltam vontade política e investimento. É muito mais barato tratar alguém do que colocá-lo na prisão. Também defendemos o cultivo caseiro da cannabis [nome científico da planta da maconha]. Já está provado que a porta de entrada para drogas mais pesadas não é a maconha, e sim o traficante. O autocultivo desvincularia o usuário do crime organizado. Também precisamos olhar o outro lado da questão. Assim como existe a demanda, existe a oferta. Precisamos diminuir o incentivo que existe para que a juventude em risco entre nessa relação tráfico-usuário. Achamos necessário ter políticas públicas e investimento pesado na integração socioeconômica desses adolescentes e jovens.
ÉPOCA – Já existem outras organizações que debatem a descriminalização das drogas. Qual é o papel da Rede Pense Livre?
Ilona – A nossa principal missão é aprofundar e aprimorar esse debate. Vamos convidar lideranças políticas de todos os partidos brasileiros para discutir nossa agenda. Acreditamos que as pessoas que estão no poder hoje não conhecem o tema. Queremos falar com políticos, líderes empresariais, líderes religiosos. Não estamos dizendo que nossas respostas são as melhores, estamos aqui para trazer o conhecimento que adquirimos e discuti-los. A Rede é formada por pessoas que fazem parte de uma nova geração de líderes. O que temos de mais inovador é que essas pessoas já estão em posições-chave na sociedade e elas podem aproveitar seu poder de influência para que outras pessoas conheçam melhor essa causa. Acreditamos em nossas propostas, mas também sabemos que elas podem melhorar e ganhar a cara da nossa realidade. As pessoas reconhecem que a política que temos hoje não funciona, mas têm medo de seguir por outro caminho.
ÉPOCA – O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é um dos padrinhos da ONG. Qual é o papel dele?
Ilona – Ele não é um membro. Falei para ele, brincando, que a faixa etária dos membros da Rede não era a dele. Ele é alguém que tem apoiado o debate sobre a descriminalização das drogas internacionalmente. Foi importante para o grupo entender o peso que ele estava dando para a discussão. Ele é uma pessoa que apoia nossa iniciativa e está muito entusiasmado.
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ÉPOCA – O Brasil tem a infraestrutura necessária para receber e tratar os usuários de droga após a descriminalização?
Ilona – O Brasil já tem uma rede de tratamento. Temos o Médico da Família, o SUS. Em termos de infraestrutura, acredito que essa rede já esteja pronta. Precisamos usar inteligentemente o modelo que já temos. O esforço maior seria no sentido de capacitar os profissionais de saúde e fazer com que essa rede de tratamento se autorreferencie. Precisamos de investimento na boa formação dos médicos. Muitos deles não estão preparados para dar respaldo psicológico e entender o que está por trás do consumo de drogas de um usuário. Não temos essa cadeira forte nas faculdades de medicina. É preciso que todo o sistema de saúde seja instruído nesse sentido. A prefeitura de São Bernardo do Campo, em São Paulo, já está avançada nessa concepção da rede terapêutica. E conseguiu dentro da estrutura já existente atender a essa demanda e encaminhar o usuário para um tratamento psicológico.
ÉPOCA – Como vocês avaliam a intervenção que vem sendo feita na Cracolândia, em São Paulo, desde o começo do ano?
Ilona – Essa questão só reproduz a lógica que já temos hoje. Não acredito que seja possível ganhar a confiança de alguém em extrema vulnerabilidade com o uso da força. A presença do aparato de segurança inibe o trabalho das pessoas na área de saúde. Não adianta tratar desse problema assim. Você pode expulsar de um lugar, mas eles vão migrar para outro. Nesse processo, outras pessoas vão acabar entrando em contato com a droga. É o efeito balão. Se você aperta de um lado, aumenta de outro. A confiança deve ser construída aos poucos para de fato tratar essas pessoas e ajudá-las a levar uma vida normal. Perde-se toda a confiança quando se militariza a questão. Enfrentar o problema do crack é arregaçar a manga e estar de fato preparado para fazer as pessoas mudar suas vidas. E isso não vai acontecer em um mês. Existe desespero e uma necessidade de agir por parte das autoridades, mas falta preparo.
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