Cresce movimento de especialistas por enfoque alternativo à repressão ao tráfico e ao consumo
Fonte: Opera Mundi
O relatório global das Nações Unidas sobre entorpecentes não deixa dúvidas: o uso de drogas ilícitas continua muito elevado no mundo, apesar dos esforços para combater a demanda e, principalmente, o tráfico. A cada ano, 210 milhões de pessoas experimentam ou fazem uso regular de substâncias ilegais. Destas, 200 mil morrem em decorrência do uso, sem contar as vítimas da repressão às drogas. Só no México foram 60 mil desde 2006.
Ao que tudo indica, a guerra às drogas está caminhando para um melancólico final. Desde 1971, quando os Estados Unidos de Richard Nixon impulsionaram o enfrentamento aos entorpecentes ilícitos, nunca foi tão evidente que o combate direto a esse consumo fracassou. Ao menos é isso que defende parte dos especialistas e políticos que discutem a questão.
“Em 2011, ficou claro para todo mundo que não é mal intencionado nem moralista que o nosso sistema falhou e não tem futuro. A ideia de continuar endurecendo o combate às drogas só vai aumentar o nível de violência na sociedade”, constata o jornalista Denis Russo Burgierman, autor do livro recém-lançado “O fim da guerra” (Ed. Leya).
Para ele, um marco importante é o surgimento da Comissão Global de Políticas sobre Drogas, que hoje é presida pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e tem “basicamente todos os generais da guerra contra as drogas dos anos 1990, a época mais dura desse enfrentamento”, diz Russo. Integram o grupo César Gaviria, ex-presidente da Colômbia; Ernesto Zedillo, ex-presidente do México; o Secretário de Estado americano, George Shultz, e o presidente do Federal Reserve durante o governo Reagan, Paul Volcker, e o ex-secretário geral da ONU Kofi Annan. Recentemente eles propuseram a Barack Obama repensar a legislação antidrogas. A reposta foi simplesmente “não”.
Mas o sistema está em crise. Para o advogado e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) Pedro Abramovay, a população americana já dá sinais de que a descriminalização da maconha está bem perto de ser aprovada. Por enquanto, 14 estados aprovaram o uso medicinal da droga. “Por incrível que pareça, os EUA, que lideraram todo o processo de proibicionismo no mundo, têm agora a maior chance de romper com isso”. Abramovay, que seria o titular da Senad (Secretário de Políticas sobre Drogas) no governo Dilma Rousseff, foi demitido no início de 2011 após se pronunciar favoravelmente ao fim da prisão para pequenos traficantes.
Alternativas e experiências
A descriminalização, entretanto, não é sinônimo de solução do problema. Na Holanda, exemplo mundial de liberalização da compra de drogas, a questão da “porta dos fundos” é uma das falhas do sistema. “O que eles fizeram foi uma espécie de arranjo entre o Poder Executivo e o Judiciário. Para eles, o problema era o consumo de heroína e cocaína. Então, as drogas tidas como leves, como os cogumelos e a maconha, poderiam ser comercializadas sob determinadas regras. Só que nada estava previsto para quem vende para essas lojas. Na Holanda é proibido plantar ou importar as drogas. E daí entra a ‘porta dos fundos’, que virou uma contradição. A droga vem do tráfico”, ressalta o antropólogo Maurício Fiore, pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Ainda assim, esse não é o principal problema do país no que diz respeito aos famosos “coffee shops”: atualmente os turistas são o maior incômodo dos holandeses. Alemães, franceses, ingleses, americanos e, claro, brasileiros, figuram entre os que lotam Amsterdã em busca de diversão e drogas.
O “turismo da canabis” irritava parte da população holandesa e, também, provocava resistência de países vizinhos, onde a droga não é liberada, que viam em Amsterdã uma porta a entrada de entorpecentes para a União Europeia. A solução encontrada foi aprovar uma nova lei que permite o consumo exclusivo para cidadãos do país. Em 2012 ela já será aplicada nas áreas de fronteira e em 2013 chega à capital.
A Espanha tentou resolver a questão do fornecimento da maconha ao permitir a existência de cooperativas de produtores e consumidores. Existem aproximadamente 200 associações não lucrativas com esse caráter em todo o país. “As cooperativas cresceram e se espalharam. Elas não poderiam ter lucro, ou seja, vender a maconha. É um modelo apresentado como alternativa”, observa Fiore.
Por outro lado, o pesquisador admite que essa é uma situação difícil de controlar: “A maconha é a droga mais consumida das ilegais, a demanda é muito grande. E sabemos como é difícil controlar uma ONG. Nós estamos em um mundo capitalista, nem todo mundo quer participar ou discutir. Boa parte quer comprar a droga e ir para casa. Além disso, só a maconha permite a produção caseira”.
Denis Russo concorda: “Muitas dessas organizações são responsáveis, mas muitas também são picaretas, porque num clima em que não há segurança jurídica, você abre espaço para todo tipo de gente”. Há pouco tempo, alegando que alguns dos cooperados estavam envolvidos com tráfico, a polícia espanhola fez uma verdadeira devassa nessas organizações.
O exemplo de Portugal
Vizinho da Espanha, Portugal é uma referência no que diz respeito a como lidar com o usuário. O país permite que cada pessoa carregue uma quantidade suficiente para 10 dias de consumo de qualquer droga – no caso da maconha, inferior a 25 gramas; para a cocaína, 2 gramas de cocaína; e 1 grama de heroína ou anfetaminas. Caso seja abordado pelas autoridades, o usuário passará pela análise de uma junta civil que julgará se ele é ou não dependente e, se necessário, será encaminhado para o tratamento do vício.
“Esse modelo é muito melhor que o do Brasil porque os resultados dele são muito positivos. Depois da instalação desse modelo o consumo diminuiu entre os jovens. Também houve uma redução brutal de mortes relacionadas ao uso de drogas. Isso porque quando você reduz a presença do sistema penal, o sistema de saúde consegue lidar melhor com o assunto”, afirma Abramovay.
A lei foi elaborada por uma comissão de notáveis nomeada pelo governo português em 2001. “O que eles fizeram foi juntar uma comissão de especialistas, estudar a sério iniciativas do mundo inteiro e criar um sistema coerente, inteligente, racional, do século XXI, feito a partir de coisas que funcionem. Algo fundamental em Portugal foi tirar a questão do âmbito da Justiça e passar para a Saúde, uma mudança brutal. Isso muda tudo, pois a Justiça é cega, tem que tratar todo mundo igual, e Saúde é o contrário disso: cada doença tem um remédio”, aponta Denis Russo.
O jornalista ressalta que, há uma década, as drogas eram o maior problema de Portugal. “Havia uma histeria muito parecida com a que o crack está provocando no Brasil, e hoje não consta na lista dos dez maiores problemas do país. Acabou de ter campanha eleitoral em Portugal e ninguém nem falou nesse assunto”, completa.
Além disso, a Suprema Corte portuguesa, assim como na Espanha, na Colômbia e na Argentina, considera a criminalização do porte como inconstitucional. Isso porque, segundo o direito penal, a auto-lesão não é passível de punição. “Nesse caso, a única vítima é aquela que consome a droga e o Estado não pode invadir a liberdade individual”, afirma Abramovay.
Maurício Fiore utiliza esse argumento para questionar a chamada guerra às drogas: “Ainda que suponhamos que o Estado possa interferir na liberdade individual – o que eu discordo –, vale mais a pena o custo dessa droga ou você tratar a pessoa para não a consumir? Que guerra é essa? Vamos impedir alguém de cheirar? É irracional. É uma razão entorpecida. Parece que estamos enxugando o gelo”.
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