do G1
Uma carta que pede a discussão da descriminalização do uso recreativo da maconha assinada por quatro neurocientistas brasileiros dividiu opiniões entre os pesquisadores da área. Dos quatro signatários, três são membros da diretoria da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC). Nesta quinta-feira (15), a entidade divulgou uma nota esclarecendo que o documento não é representativo de toda a SBNeC.
“A carta foi originalmente escrita por diretores, mas ela não fala em nome de toda a SBNeC”, afirmou o presidente da entidade, Marcus Vinícius Baldo, da Universidade de São Paulo, ao G1.
O documento, divulgado originalmente no jornal “Folha de S.Paulo” na quarta-feira (14), foi redigido como forma de protesto contra a prisão do músico carioca Pedro Caetano, acusado de tráfico de drogas, e assinado pelos cientistas Cecília Hedin-Pereira, João Menezes, Stevens Rehen e Sidarta Ribeiro. Os três primeiros são da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Ribeiro, do Instituto Internacional de Neurociências de Natal. Cecília Hedin-Pereira é vice-presidente da SBNeC, Ribeiro é secretário e Rehen é tesoureiro.
“Nosso objetivo com a carta é mostrar uma situação que a gente acha que tem que ser discutida. Não falamos em nome de ninguém além de nós mesmos” afirmou Stevens Rehen ao G1. “Não acreditamos que seja certo confundir usuários com traficantes e a sociedade precisa discutir isso”, diz ele.
No texto, Rehen e seus colegas afirmam que “em virtude dos avanços da ciência que descrevem os efeitos da maconha no corpo humano e o entendimento de que a política proibicionista é mais deletéria que o consumo da substância, vários países alteraram suas legislações no sentido de liberar o uso medicinal e recreativo da maconha. (...) A discussão ampla do tema é necessária e urgente para evitar a prisão daqueles usuários que, ao cultivarem a maconha para uso próprio, optam por não mais alimentar o poderio dos traficantes de drogas”.
As afirmações foram rebatidas por colegas de SBNeC. O neurocientista Jeferson Cavalcante, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), discorda da iniciativa. “Aos cientistas cabe apenas dar os fatos, não opinar sobre o que a sociedade deve fazer. Uma coisa é mostrar os efeitos da maconha no cérebro. Isso é o aspecto científico. Mas há um aspecto social e cultural envolvido nessa questão também”, acredita.
“Fiz trabalho social e vi com meus próprios olhos que a maioria dos jovens viciados em drogas começa com a maconha. A maconha é o primeiro passo. Eles cheiram cola porque não têm dinheiro para comprar maconha. Não se pode ignorar isso”, critica Cavalcante. "Se a sociedade civil quiser consultar os neurocientistas sobre o efeito da maconha no cérebro, daremos nosso parecer científico. Se vamos assinar algo enquanto neurocientistas devemos nos ater a isso”, afirma. "Todos temos direito a nossas opiniões pessoais sobre qualquer tema, mas não devemos misturar posição pessoal com profissional", diz ele.
Gilberto Fernando Xavier, da USP, afirma que “como qualquer medicamento, é preciso analisar se os benefícios superam os malefícios [da maconha]”. “Existem evidências fortes e substanciais para que se pense que a maconha possa ser usada para tratamento de algumas doenças. Para o uso recreativo ainda falta avaliar em extensão se algum benefício eventual pode compensar os malefícios de alteração de atenção e memória que sabemos que ela causa”, diz.
O presidente da SBNeC diz respeitar a opinião dos quatro signatários da carta, mas discorda da “dimensão que essa história tomou”. “A discussão extrapolou as balizas científicas e adquiriu uma cor ideológica que de forma alguma tem o apoio da SBNeC. Com isso eu não concordo”, afirma Marcus Vinícius Baldo.
Ele conta que após a divulgação do documento, recebeu desde mensagens de apoio até críticas dos três mil membros da SBNeC. “Como é um assunto polêmico, vi desde aplausos até vaias. Não há uma opinião oficial da SBNeC até existir uma discussão que envolva todos os membros”, afirma.
Íntegra da carta:
“A planta Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha, é utilizada de forma recreativa, religiosa e medicinal há séculos mas só há poucos anos a ciência começou a explicar seus mecanismos de ação. Na década de 1990, pesquisadores identificaram receptores capazes de responder ao tetrahidrocanabinol (THC), princípio ativo da maconha, na superfície das células do cérebro. Essa descoberta revelou que substâncias muito semelhantes existem naturalmente em nosso organismo, permitiu avaliar em detalhes seus efeitos terapêuticos e abriu perspectivas para o tratamento da obesidade, esclerose múltipla, doença de Parkinson, glaucoma, ansiedade, depressão, dor crônica, alcoolismo, epilepsia e dependência de nicotina, entre outras enfermidades. A importância dos canabinóides para a sobrevivência de células-tronco foi descrita recentemente pela equipe de um dos signatários, sugerindo sua utilização também em terapia celular.
Em virtude dos avanços da ciência que descrevem os efeitos da maconha no corpo humano e o entendimento de que a política proibicionista é mais deletéria que o consumo da substância, vários países alteraram suas legislações no sentido de liberar o uso medicinal e recreativo da maconha. Ainda que sem realizar uma descriminalização franca do uso e do cultivo, o Brasil veta (através do artigo 28 da Lei 11.343 de 2006) a prisão pelo cultivo de maconha para consumo pessoal, e impõe apenas sanções de caráter socializante e educativo. Infelizmente interpretações variadas sobre esta lei ainda existem. Um exemplo disto está no equívoco da prisão do músico Pedro Caetano, integrante da banda carioca Ponto de Equilíbrio. Pedro Caetano está há mais de uma semana numa cela comum acusado de tráfico de drogas. O enquadramento incorreto como traficante impede a obtenção de um habeas corpus para que o músico possa responder ao processo em liberdade.
A discussão ampla do tema é necessária e urgente para evitar a prisão daqueles usuários que, ao cultivarem a maconha para uso próprio, optam por não mais alimentar o poderio dos traficantes de drogas. Em seu próximo congresso, de 8-11 de setembro próximo, a Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC) irá contribuir para a discussão deste tema pouco conhecido da população brasileira. Um painel de discussões a respeito da influência da maconha sobre a aprendizagem e memória e também sobre as políticas públicas para os usuários será realizado sob o ponto de vista da neurociência. É preciso rapidamente encontrar um novo ponto de equilíbrio.
Cecília Hedin-Pereira (UFRJ)
João Menezes (UFRJ)
Stevens Rehen (UFRJ)
Sidarta Ribeiro (UFRN)"
post muito bom .
ResponderExcluirExcelente a carta e o posicionamento dos cientistas; é preciso estabelecer o diálogo, com posições claras e pesquisas, informação sem preconceito, jogo aberto com a sociedade. Aí então a sociedade vai estar apta a decidir pela legalização ou não. Não dá pra manter o Estado omisso e deixar o tráfico ganhando terreno por causa da hipocrisia ideológica e da condescendente falta de firmeza das ciências.
ResponderExcluirCandidatos à presidência em 2010: que tal debater seriamente este assunto?